No país que mais mata transexuais e travestis, garantir cotas para essa população é mexer nas estruturas.
Paula Nunes
Advogada criminalista, é codeputada estadual da Bancada Feminista do PSOL-SP; faz parte da Marcha das Mulheres Negras
Carol Iara
Mestra em ciências sociais, é codeputada estadual da Bancada Feminista do PSOL-SP
A Unicamp aprovou por unanimidade as cotas para pessoas trans na graduação. Essa vitória levantou um tema central: cotas são sobre reparação de uma dívida histórica com essas pessoas, com um histórico de marginalização, exclusão social e múltiplas formas de violências, à quem o direito de existir, estudar, ocupar o mercado de trabalho formal e envelhecer é negado.
A conquista de cotas trans é parte das reivindicações para democratizar o acesso à uma instituição historicamente voltada às elites brancas, que deixou de fora gerações da classe trabalhadora. Ela se soma a outras reservas de vagas para minorias sociais no processo que escancara as desigualdades que atravessam o Brasil.
Ainda que o estado produza poucos dados sobre a triste realidade da população trans, entidades como a Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (Antra) apontam uma expectativa de vida dessas pessoas de 35 anos. A Rede Nacional de Pessoas Trans no Brasil afirmou que 82% não concluem o Ensino Médio e, ainda segundo a Antra, apenas 0,3% acessam o Ensino Superior. E 90% estão na prostituição sem oportunidades no mercado de trabalho.
O processo de marginalização e violência que a população trans sofre no país
é histórico. Ele começa durante a invasão catequizadora colonial e tem como um de seus símbolos Xica Manicongo, mulher trans negra escravizada condenada à morte. Só não teve a sentença concluída por ter sido obrigada a vestir roupas masculinas. Na Ditadura civil militar, a PM de São Paulo organizou a higienista Operação Tarântula, que tinha como alvo pessoas transexuais e travestis que trabalhavam nas ruas. Com muita violência, executou e perseguiu diversas pessoas com objetivo de “limpar a cidade”.
Garantir o acesso de pessoas trans ao ensino superior é um passo para superar esses dados. A universidade é um ambiente transformador e deve incluí-las como agentes produtores de conhecimento. Ela ganha muito com a inclusão destas realidades e possibilita outros caminhos profissionais, especialmente no mercado formal.
Mais de dez anos após a implementação das cotas, houve um aumento de mais 400% de pessoas negras no ensino superior, segundo o IBGE. As universidades também diminuíram fraudes com as bancas de heteroidentificação.
Investidas contra minorias sociais se intensificaram no Brasil, que tem parlamentares eleitos com pautas anti-trans em todo o país. Um levantamento da Folha de São Paulo identificou 293 PLs anti-trans protocolados em 2023. Ataques que questionam identidades de gênero, vetam debates em escolas e proíbem o uso de linguagem neutra são exemplos dessas políticas.
Após a decisão da Unicamp, alguns parlamentares tentam retroceder no que se avançou. Um deputado afirmou que pediu, à PGR de São Paulo, a anulação da decisão. Outro propôs, na Alesp, o fim de cotas trans em concursos e universidades estaduais.
Essa agenda, baseada no fundamentalismo e na negação de identidades, ganhou força com grupos extremistas que atuam dentro do Estado, restringem direitos e atacam a democracia. No Brasil, com discurso contra mulheres, LGBTs, negros e outras minorias, formaram uma base que chegou à Presidência e culminou em ataques às instituições democráticas.
A discussão sobre acesso precisa ser guiada sobre permanência, com medidas como adesão ao nome social, bolsas de estudo e políticas que efetivem o respeito às identidades de gênero.
As pessoas trans vão envelhecer, vão ser doutoras!